Economia Solidária contra a ilusão do mercado


A economia solidária, ou melhor, as práticas econômicas baseadas no trabalho associado e na gestão coletiva, está se fortalecendo no Brasil. Segundo recente mapeamento nacional, são mais de 15 mil empreendimentos, compreendendo aproximadamente 1 milhão e 300 mil trabalhadores(as) associados(as), dos quais 70% foram constituídos a partir da década de 1990. São grupos de produção e consumo, cooperativas e associações nos mais diferentes ramos de atividade.
Se é verdade que, na maioria dos casos, a constituição do empreendimento é uma resposta à crise do assalariamento, não é igualmente evidente que a solidariedade dependa de crises para se manter viva. Para defensores do livre mercado, é ilusão ou mesmo ingenuidade pensar na produção ou continuidade de laços sociais em meio a um ambiente marcadamente competitivo e individualista.
Mas quem são os paladinos do mercado para falar de ilusões? O atual processo de acumulação se alimenta da economia sem lastro do setor financeiro, da simulação de um ambiente de bem-estar em meio à miséria e do consumismo gerador da descartabilidade dos produtos e, portanto, da destruição de recursos naturais.
O mapeamento mostra que a maior parte dos empreendimentos solidários tem origem em vínculos comunitários e em relações de reciprocidade, particularmente no que se refere à composição dos recursos e patrimônio necessários para iniciar o empreendimento. Além disso, apresentam um envolvimento com movimentos e ações comunitárias. Ou seja, a dinâmica mesma do empreendimento tende a impactar o entorno, valorizando e potencializando recursos materiais e humanos disponíveis no território.
Outro aspecto contra a ilusão do mercado é a requalificação do sentido do trabalho e do consumo quando a solidariedade atinge as relações de produção e distribuição. A possibilidade da cooperação implica o reconhecimento da interdependência de percepções, saberes e fazeres, favorecendo o enriquecimento intelectual e criativo a partir do trabalho. Tal interdependência tende a ser reconhecida também na relação consumidor/produtor(a) e mesmo entre consumidores(as). Assim, o ato de consumir passa a ser visto como estando baseado em valores e opções com conseqüências para o bem viver de cada pessoa. A solidariedade não se traduz em sacrifício da individualidade ao coletivo, mas sim a sua promoção na e pela coletividade.
Não é pequeno o esforço que agentes públicos e privados precisam fazer para manter a ilusão do mercado em funcionamento para o benefício de cada vez menos pessoas. Cabe indagar: se essa trágica ilusão merece tal esforço, o que dizer de uma realidade que aposta na associação, na ação coletiva para gerar ocupações, resgatar a dignidade do trabalho, revalorizar o consumo em favor da qualidade de vida e preservar o meio-ambiente?
Faz-se urgente direcionar o Estado e as organizações civis para a promoção do direito ao trabalho associado, conforme defendido pelo Fórum Brasileiro de Economia Solidária (FBES). Particularmente agora, às vésperas da Conferência Nacional de Economia Solidária - a se realizar em Brasília, de 26 a 29 de junho. Com a conferência, que tem por eixo a Economia solidária como estratégia e política de desenvolvimento, pretende-se avançar na construção de políticas públicas voltadas para o setor.
Nesta direção, o movimento da economia solidária trabalha com uma agenda voltada à superação dos principais gargalos existentes para a consolidação e ampliação das práticas econômicas solidárias: logística e canais de comercialização e distribuição da produção; acesso e organização dos serviços de crédito; reconhecimento jurídico de suas organizações e atividades desenvolvidas; formação e assistência técnica e desenvolvimento tecnológico.
Em cada um desses pontos está presente a necessidade de estender a dimensão associativa para além do grupo, cooperativa ou associação, buscando a potencialização e agregação de valor por meio de arranjos cooperativos entre empreendimentos no território.
Nova categoria social
Um primeiro e grande esforço foi exatamente o mapeamento nacional realizado pela Secretaria Nacional de Economia Solidária em parceria com o FBES. Com o mapeamento, o empreendimento econômico e solidário se afirma como uma nova categoria social, favorecendo o direcionamento de políticas públicas.
Mas é fundamental que o mapeamento permita a visibilidade pública do direito ao trabalho associado. Um dos caminhos para que isso aconteça é a difusão dos princípios, valores e práticas da economia solidária nas escolas públicas e privadas do país. Apresentar aos(às) jovens alternativas de inserção socioeconômica que não se reduzam ao horizonte cada vez mais estreito do assalariamento nem tampouco ao empreendedorismo que alcança sobrevida em relações terceirizadas.

A repolitização da economia ou a reivindicação da cidadania nas relações econômicas precisa ganhar corpo na sociedade. Reivindicam-se ações públicas estatais e não-estatais que repercutam sobre a institucionalidade do mercado, nas regras que balizam a oferta e a demanda. Como se vê, a economia solidária não está contra o mercado e sim contra a ilusão do livre mercado.
Novos instrumentos de política pública precisam ser acionados para se avançar nessa direção. Deve-se avançar na criação de mecanismos de aproximação do agente público em relação às necessidades e potencialidades existentes no território. Promover a cidadania econômica no sentido do desenvolvimento de oportunidades de geração de riqueza a partir do trabalho associado. Isso exige, necessariamente, um Estado que atue em favor da descentralização econômica. Mas não se trata apenas de disponibilizar os fatores e incentivos produtivos, mas induzir e fortalecer formas integradas e combinadas de aplicação desses recursos.
A atuação pública sobre o mercado cabe igualmente às organizações civis. Aos sindicatos, acostumados às reivindicações salariais; às ONGs, voltadas normalmente à assistência, formação e comunicação; e às universidades, geradoras de um conhecimento que pouco dialoga com os movimentos sociais. Tais organizações têm um papel fundamental na disseminação de práticas, conhecimentos e valores em favor da auto-organização econômica de trabalhadores(as) e consumidores(as). A ativação de uma cultura associativa na sociedade é condição indispensável para que se forje relações de mercado promotoras do bem-estar e da emancipação dos indivíduos.
*João Roberto Lopes Pinto, coordenador do Programa de Economia Solidária do Ibase. Publicado originalmente pela Agência Ibase

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